Quem ouviu Passos Coelho afirmar esta segunda-feira que «os portugueses já não estão perante o abismo com que nos defrontámos há praticamente um ano» deve ter-se lembrado – se para tanto tiver memória – da conhecida frase do antigo presidente brasileiro General Artur da Costa e Silva: «Pegamos o país à beira do abismo e demos um passo à frente». Passos não foi tão longe na troca dos passos, mas nem por isso deixou de cair – deliberadamente, convenhamos, que a demagogia é terreno que pisa com convicção – no pântano do grotesco ao dizer que Portugal «está hoje mais forte, mais sólido e mais resistente a contágios adversos».
Falando num jantar promovido pela Câmara de Comércio e Indústria Luso-Alemã, no Convento do Beato, em Lisboa, o chefe do Governo insistiu que o País «está muito mais preparado para receber investidores e para iniciar um novo ciclo de investimento», mas remeteu convenientemente para um futuro incerto a recuperação do «dinamismo da sua procura interna», o qual estará, ao que parece, condicionado pela realização do seu «ajustamento interno».
Passos não explicou como se processará o referido «ajustamento», nem a tal se prestava a ocasião.
É que passa agora um ano da tomada de posse do Governo, motivo sempre propício a balanços, o que face ao actual estado das coisas e por mor do abismo não suscita entusiasmo nas hostes governativas. Imagine-se, por exemplo, que Coelho tinha de explicar onde foi parar a promessa de criar «o Requalificação XXI», constante no programa eleitoral, para «requalificar 50 mil desempregados, nos próximos cinco anos», teoricamente destinado a «profissões em que exista maior inadequação entre a oferta e procura», ou então o programa «Qualificação +», à época apresentado como visando travar a emigração de jovens com qualificações elevadas, ou ainda a promessa de o Estado criar empregos.
Cotejando cada uma daquelas promessas com a crua realidade, o que se encontra, um ano depois, é o brutal aumento do desemprego e a perspectiva de continuar a aumentar no próximo ano (pelo menos), como o ministro das Finanças reconheceu no final da semana passada; é a sucessão de conselhos ministerais à emigração dos nossos mais qualificados jovens, instados a abandonar a sua «área de conforto», com o próprio Passos a encorajar a partida dizendo que o desemprego deve ser encarado como «uma oportunidade»; é enfim o ataque sem rebuços ao já de si brutal Código do Trabalho para tornar ainda mais fácil e mais barato o despedimento e mais penosa e exploradora a jornada de trabalho.
E isto para não falar do resto, que é tudo o que foi condição de vida digna conquistada com o 25 de Abril, a ser engolido na voragem das exigências do capital, de que Passos e o seu Governo são fiéis serventuários, sempre acolitados pelo PS da alternância.
Passos tem razão ao dizer que os portugueses já não estão perante o abismo. Com a política que foi e está a ser seguida, grande parte já caiu mesmo no precipício, e outros se seguirão. Até a ex-ministra Manuela Ferreira Leite já o percebeu, pelo que alerta para a necessidade de «não se matar o doente com o tratamento». É um aviso que tresanda a medo: do contágio e do abismo.
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